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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

MÚSICA E POESIA (8)

"Tu pisavas nos astros, distraída..."
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Exceto os versos acima, talvez até o ilustrado público desse chalezinho desconheça a obra (ou dela tenha poucas referências) de um dos principais letristas da música popular brasileira: Orestes Barbosa (1893-1966).

Filho de família pobre no Rio de Janeiro do início do século, não freqüentou escola e iniciou-se no jornalismo aos 19 anos, pelas mãos de ninguém menos que Rui Barbosa. Antes dos 30 anos já havia publicado vários livros de poesia. O talento chegou a valer-lhe indicação para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, eleição que perdeu e a partir da qual dedicou-se às letras do jornalismo e da música (aqui para uma biografia resumida).



No centenário de seu nascimento, Sérgio Augusto publicou artigo na Folha de São Paulo, do qual extraio os seguintes excertos (aqui para o artigo na íntegra):

"Como boêmio e jornalista, sua vida também foi um palco iluminado. Sobretudo pelas luzes e pelas estrelas, as luzes naturais dos notívagos e as mais solidárias musas dos poetas.

Em seus versos, em suas letras e em suas crônicas, elas viviam brilhando num céu salpicado de metáforas. Um céu que um dia era 'um grande armarinho', noutro um 'jornal de sonho'. No primeiro o poeta comprava luar a metro; no segundo, lia 'todo o passado tristonho que não se pode escrever'.




Quase todos a sua volta o chamavam de mestre; respeito não tanto ditado por sua ascendência etária ( tinha mais 18 anos que Noel Rosa ), mas por ser o mais culto, viajado e exuberante membro da melhor confraria que Vila Isabel já abrigou. Em qualquer turma era o centro das atenções, fonte das observações mais sagazes, das tiradas mais desconcertantes, das imagens mais surpreendentes, muitas das quais se aninharam em suas canções de amor e ciúmes, de intriga e erro, de solidão e saudade. Boêmio singular, pouco bebia. 'Meu negócio é papo', dizia, com o cigarro permanentemente pendurado nos lábios.




Orestes foi o Vinícius dos anos 20 , 30 e 40. 'Um Vinícius muito mais radical', lembrando que, ao contrário do bardo da bossa nova, Orestes nunca mais voltou a poesia depois de abraçar o samba e a canção.




À música rendeu-se por inteiro, por quase toda a década de 30. Quando ela acabou, a canção romântica já era outra coisa, suspirando sem pieguice e invocando objetos nunca dantes ventilados, como tapete, telefone, rádio e anúncios luminosos. Até o sorriso e o pranto ficaram mais inteligentes depois que Orestes transformou a lágrima em "pérola nublada", a saudade em "círio aceso sem altar", a lua em "hóstia de mágoas" e
"clichê dourado impresso em papel azul".

É mesmo verdade que Manoel Bandeira considerava o verso 'tu pisavas nos astros distraída' o mais bonito da língua portuguesa ( e dizia 'se ralar' de inveja de Orestes)."





Talvez o que melhor caracterize sua obra tenha sido uma resultante lufada de modernidade no samba, algo compartilhado com outras formas de expressão artística no Brasil dos anos 20 e 30. O mesmo ocorreria com a Bossa Nova - e Vinícius - em fins dos anos 50, levando a música popular e as letras das canções ao mais alto grau de apuro técnico e de estética fundamentalmente brasileira (aqui, aqui e aqui para mais informações sobre a vida e obra do poeta).




ATUALIZAÇÃO (19/10/09) às 8:45 hs.)

Cora, a simpática moça que se recusa, inexplicavelmente, a criar seu próprio blog, fez ótimo comentário a esse postinho, mostrando as ligações do poeta com outro extraordinário letrista da mpb, Noel Rosa. Reproduzo abaixo:

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Carlos Didier, músico e pesquisador carioca, biógrafo de Noel Rosa e de Orestes Barbosa informa numa entrevista que Orestes, contemporâneo,dezessete anos mais velho do que o Noel, teve o olhar agudo para detectar que o jovem Noel Rosa não era comum – “era, de fato, um ponto fora da curva” – “um mito”. Orestes escreveu a respeito de Noel:- “É um gênio”.

Compôs, em parceria com Noel Rosa:

- Araruta (1932)

Tu pedes, mandando
Faça o favor
A tua boca nunca diz
Tu cedes, negando
Com estes olhos
Que pra mim são dois fuzis
Sou mole, manhoso
Teus impropérios
Retribuo com brandura
Pois água mole
Na pedra dura
Tanto bate até que fura
Tu beijas, mentindo
A tua boca
Beija e mente sem sentir
Desejas, sorrindo
Que o teu perdão
Humildemente eu vá pedir
Não peço, espero
Ainda a ver-te
Entre lágrimas bem mal
Meu bem, escuta
A araruta
Tem seu dia de mingau

- Positivismo (o próprio Noel gravou, setembro/1933

A verdade meu amor mora num poço
É Pilatos, lá na Bíblia, quem nos diz
E também faleceu por ter pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris
Vai orgulhosa, querida
Mais aceita esta lição
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração
O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim
Vai coração que não vibra
Com teu juro exorbitante
Transformar mais outra libra
Em dívida flutuante
A intriga nasce num café pequeno
Que se toma para ver quem vai pagar
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar

- Habeas-Corpus (1933)

No tribunal da minha consciência,
O teu crime não tem apelação.
Debalde tu alegas inocência,
Não terás minha absolvição.
Os autos do processo da agonia,
Que me causaste em troca ao bem que te fiz,
Chegaram lá daquela pretoria,
No qual o coração foi o juíz.
Tu tens as agravantes da surpresa
E também as da premeditação,
Mas na minh’alma tu não ficas presa
Porque o teu caso é caso de expulsão.
Tu vais ser deportada do meu peito
Porque o teu crime encheu-me de pavor
Talvez o habeas-corpus da saudade
Consinta o teu regresso ao meu amor.

- Suspiro (1934)

Suspiro anseio secreto
Revelação que o afeto
Gemer que ninguém traduz
Suspiro triste recado
Que um coração ansiado
Da desventura na cruz
Suspiro vossa desgraça
Vossa alegria que passa
Dando lugar ao sofrer
Suspiro o peito se cala
Na dor que tanto apunhala
E não se pode dizer
Suspiro anseio secreto
Revelação que o afeto
Gemer que ninguém traduz
Suspiro triste recado
Que um coração ansiado
Da desventura na cruz
Suspiro que crueldade
Tem que nascer da saudade
Enquanto o amor quiser
Eu já dei mais de mil giros
E a fonte dos meus suspiros
É sempre a mesma mulher

Mais aqui: http://www.brasileirinho.mus.br/menuradio.htm

:*"

É de se supor que tenha havido forte influência recíproca entre os autores, que trouxeram, entre outras coisas, a crônica da cidade do Rio de Janeiro para a música. Para ilustrar, segue gravação da parceria Positivismo, em performance do próprio Noel e de Pixinguinha (reparem na crítica velada à política de valorização do café, nos versos "Com teu juro exorbitante/Transformar mais outra libra/ Em dívida flutuante").
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