sexta-feira, 10 de setembro de 2010

SAUDADE BRASILEIRA (5/5)

Para Udi Tarora

Termino aqui (em ritmo baiano) a série iniciada há um ano. Aos que desejarem ler as demais postagens basta clicar na tag "saudade brasileira".


"Ruínas de uma escola em construção": assombro, perplexidade e desalento 

A frase, genial, é de Caetano Veloso, do início da década de 90; os sentimentos são meus e perduram... Com a redemocratização do país, em meados dos 80, ao porre libertário seguiu-se uma combinação de gravíssima crise econômica e inapetência do sistema político. A crise foi superada. Elegeram-se, democraticamente, três novos presidentes, dois deles por duas vezes; mas os estragos parecem duradouros...

No período Collor-Itamar (1990-1994), o assombro: a democracia não bastava. Nem para se resolver a crise econômica, nem para se evitar a política, menos ainda para erigir ética na coisa pública. E o discurso liberal, ainda que adequado, chocava-se, escandalosamente, com a realidade social do país.

Nos anos Fernando Henrique (1995-2002), finalmente foi possível superar a crise econômica herdada ainda do tempo da ditadura. Avanços importantes também foram obtidos no campo institucional, mas a social-democracia brasileira - tal qual jabuticaba -, aliou-se a setores conservadores e/ou fisiológicos para aprovar o projeto que mais interessava aos grupos no poder: a própria reeleição. Perplexidade! Ampliada por quadra externa pouco favorável...

A era Lula (2003-?) combinou as formas mais atrasadas de aliança política à reversão do quadro externo, agora extremamente favorável, - e ao mito (ou mistificação) do presidente popular. A boa performance econômica ajudou a disfarçar o crescimento baseado no crédito, o populismo e mesmo a malversação da coisa pública. E até a democracia parece hoje ameaçada: desalento...


Seguem alguns textos relativos a esses últimos 20 e poucos anos, sempre inspirados no original de Gonçalves Dias. Interessante reparar que as preocupações extrapolam o mero formalismo antropológico. A "Canção do Exílio", totalmente endogeneizada, serve agora para tratar de qualquer assunto:


Em 1985, Eduardo Alves da Costa publica sua Outra Canção do Exílio.
"Minha terra tem Palmeiras
Corinthians e outros times
De copas exuberantes
Que ocultam muitos crimes.

Em cismar, sozinho, ao relento,
sob um céu poluído, sem estrelas,
nenhum prazer encontro eu cá (...)"


Affonso Romano de Sant’Anna publica, em fins dos 80, sua Canção do Exílio Mais Recente.
"Não ter um país
a essa altura da vida,
a essa altura da história,
a essa altura de mim,
- é o que pode haver de desolado.

(...) Mas sobre país
eu pensava ser como pai e mãe: para sempre.

País
era o quintal e a horta a alimentar a mim
e aos filhos com a sempre zelosa sopa do jantar.
País
era como a Amazônia: desconhecimento da gente
ou como o São Francisco: inteiramente pobre e nosso (...)"


Em 1992, Báh publica O Exílio da Canção.
"Minha terra tem horrores
Tem folia e tendepá (...)

Minha terra não dá terra
Pra se plantar ou morar
Tem muito gado no pasto
E luxúria nos palácios
Muita moita na cidade
Muita fome e impunidade (...)

Minha terra tem igrejas
Minha terra tem favelas
Tem novela e solidão
Menores e prostitutas
Cocaína de plantão (...)

É Sodoma e é Gomorra
Indo sou politeísta
Também sado-masoquista
Miserável brasileiro
Que não tem honra nem glória
Brasileiro miserável
Que não vai entrar pra história (...)"


Iosif Landau publica, em 199?, o seu Exilado.
"(...) minha terra tem palmeiras, onde canta o tiroteio,
— preciso de emprego — falei pro capataz
com cara e jeito de capitão de navio negreiro,
— retornei do Vietnã deixei por lá meu irmão,
— Vietnã o caralho, seu safado,
num tamos em conflito naquelas paragens,
— tá certo, doutor, vim do Morro da Babilônia,
que tá mais quente que a guerra do Afeganistão,
necessito de batente pra comer meu pão,

(...) me mando em torrentes de cólera e loucura
pelas horas vividas sem prazer,
pela tristeza do que eu tenho sido,
pelo esplendor do que eu deixei de ser."


Jô Soares, em meados dos 90, publica sua Canção do Exílio às Avessas.
"Minha Dinda tem cascatas
Onde canta o curió
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.

(...) Minha Dinda tem piscina.
Heliporto e tem jardim
Feito pela Brasil's Garden:
Não foram pagos por mim.

(...) E depois de ser cuidado
Pelo PC, com xodó,
Não permita Deus que eu tenha
De acabar no xilindró."


Ferreira Gullar publica sua Nova Canção do Exílio, em 2000.
"Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos

(...) Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos (...)"


Marta Helena Cocco, publica sua Versão Enlatada do Exílio, em 2001.
Em lá
sang sung
som do Sam
soa bem
bang bang.
E cá
sangue sangue
sanguessugas
se dão bem.


Em 2004, Antônio Virgílio de Andrade publica sua Canção do Regresso.
"Minha terra tem paisagens
Que em outro lugar não há;
As aves que aqui trinam
Não trinam como as de lá. (...)

Minha terra faz fronteira
Com a seca e o mar, (...)

Minha terra tem folguedos
Xaxado, baião, frevo, boi-bumbá;(...)

Não permita Deus que eu morra
Sem matar a sede no 'Velho Chico' (...)


Em 2005, Francisco Simões publica Terra Minha.
"Minha terra tem palmeiras... mas também tem muito hipócrita, e, olhe, quanto canalha, e quantos corvos, e quanta gralha, quanta gralha, ''que nos palácios se assoalha, em úberes mananciais de tetas sufragam a sugação do comum";

Minha terra tem palmeiras... e tem milhões sem eira nem beira que vivem a tomar rasteira de discursos, de decretos, de verbas tantas desviadas, para longe ou para perto, onde o esperto prevalece, a nação deve e não cresce, e o social morre sem prece;

Minha terra tem palmeiras... mas também tem bandalheiras, privatizadas ou não, onde meteram e metem a mão, levando os anéis sem deixarem os dedos, sem medos nem CPI, e nós aqui oh, e nós aqui oh;

Minha terra tem palmeiras... e teve Severino, e mais 300 deputados, não cassados, que enxovalharam o destino, plantando o dito, Severino, e se ele não renuncia, a fria ia cobrar a conta, pois é, e que afronta, que afronta; (...)"


Horácio Costa publica, em 2009, seu Sobre Canários e Presidentes.
"Não sei porque ser contra a inspiração
O canário inspira
Assim como o capo em Brasília
E péssimo poeta ex-presidente
Inspira também
Neste universo de extremos
Entre o canto do canário
E José Sarney (...)

Talvez esteja prestando um tributo
À sua própria finitude
Engaiolado na varanda do zelador
Do Memorial José Sarney
Em São Luís do Maranhão (...)"



Era Lula: a "desinvenção" do Brasil

Se houve quem se assustasse com os "desvios de comportamento" da madame social-democrata, o que dizer então da jovem socialista quando chega ao poder! Mas o tema aqui não é ética. É ainda mais fundo: trata da metáfora, da representação, da simbologia do que há de peculiar naquilo que um dia chamou-se Terra Brasilis...

E nesses tempos sombrios assistimos, estupefatos, à apropriação do sonho: nada existia antes do líder carismático; todos devemos aceitar, passivos, a lobotomia oficial. O "país do futuro" vira o país sem passado!

Nunca fomos morenos ou mulatos: somos "afro-descendentes" e brancos, opostos (meu Deus, Gonçalves Dias era mestiço e isto foi a razão do "exílio"!). O milagre das três raças - sonho de José Bonifácio e de Sérgio Buarque - dá lugar à política de cotas.

E pior, muito pior: alguns dos que pegaram em armas, no período da última ditadura são, agora, heróis. E os dela exilados, de fato,  viraram "fujões", covardes. Transformaram o exílio em fuga...



Termino com esses pobres versos de minha própria lavra, mas sugiro Jobim para acompanhar a leitura dos demais poemas, todos muito bons. Apenas por coincidência é a música que mais gosto. Também apenas por coincidência chama-se Saudade do Brasil.


Palmeira estatizada e sabiá mudo
Minha terra tem palmeiras
Estatizadas
Ai, quem me dera os primores

Nosso céu tem mais estrelas
Do que uma única vermelha
Nossas várzeas, escolas inacabadas

Não permita Deus que eu morra
Antes que paguem violadores
Derrotem censores
E libertem o sabiá.


.

17 comentários:

  1. R, bem interessante esta abordagem e mais estes textos... Gostei da parte baiana que me toca. .. Mas pra falar bem a verdade, não gosto muito deste país que vejo...

    Aqui na Europa a gente escuta: ah, o seu país está crescendo... Crescendo onde? Porque segundo minha família, amigos, o nordeste anda do mesmo jeito...
    O Pernambuco está um tanto maquiado. Por que será? Hai ai...

    Grande abraço,
    =)
    www.cafezinhododia.blogspot.com
    www.poesiacafeeprosa.blogspot.com (esse n sei se conhece)

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  2. RM
    O sabiá será liberado com certeza! É uma questão de paciência (mais e mais)...

    Beijos
    Anne

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  3. Minha terra tinha palmeiras
    MST invadiu e adeus sabiá.

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  4. Calila,
    e você em Portugal... Só faltava ser Coimbra. Mas e aí, e quando bate a saudade?

    Anne,
    será? Daqui a pouco falarão que "nunca antes neste país" o sabiá cantou tanto!

    Chorik,
    e agradeça que as Farc ainda não chegaram...

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  5. Pois bem R... Estou na terrinha semana que vem, meus últimos dias desta temporada estão chegando ao fim... Coimbra, gostei muito daquela cidadezinha... =) Mas estava em Bragança. Agora, sigo de férias pelas 'inglaterras' da vida... =)
    Beijos

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  6. Em Portugal, com os índices de crescimento económico do Brasil, está a consolidar-se a sensação que os problemas dos nossos irmãos brasileiros derivam da classe intelectual, por definição sempre insatisfeita.

    É isto verdade?

    Abraço,
    António

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  7. Calila,
    fiz a pergunta porque Gonçalves Dias estava "exilado" em Coimbra quando escreveu o famoso poema... Aproveite as férias e bem vinda!

    Grande Tapadinhas,
    justificada a explicação para quem está a milhares de quilômetros... Várias vezes tivemos crescimento espetacular seguido de espetaculares crises. E, por "coincidência", não raro ocorriam em períodos eleitorais...

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  8. Érrim, neguim mineiro!
    Sempre me fazendo perder o rebolado com a sua sensibilidade e generosidade...
    Qualquer saudade individual é nada quando você nos remete a essa saudade coletiva que faz sofrer uma nação inteira :(
    teria muito ainda a dizer mas você já disse praticamente tudo, em suas palavras e, através de sua pesquisa minuciosa, nas palavras de poetas expressivos.
    Ainda bem que tem um Ferreira Gullar prá dar um toque mais ameno ao "modernizar" a canção do exílio... vamos fazer amor (let's fall in love)

    ...mas me esclarece aqui uma "questã": como seria a social democracia ser "tal qual jabuticaba"?!

    mas, como ia dizendo, fico com a versão (alienada?!) de Ferreira Gullar com um tema musical: http://www.goear.com/listen/98f9c19/lets-do-it-(lets-fall-in-love)-ella-fitzgerald

    beijo agradecido pelo carinho recíproco

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  9. Ei dona japinha,
    a senhora merece... rss

    Bem, há muito circula uma piada entre economistas que diz que, se alguma coisa só existe no Brasil - e não é jabuticaba - não pode boa coisa ser... rss

    Acho nada alienado o poema e também acho linda a canção.

    Beijão, querida!

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  10. Vc é um comentarista e tanto, RM!! Bom ser amiga, mesmo que virtual, de um ser tão cheio de cultura, como ocezinho... rs
    Belo trabalho de pesquisa e super feliz nas escolhas!! E ainda fechou com louvor, na sua "porópia" composição de exílio... Dorei!
    Udi mereceu tudim, tim tim por tim tim!! rs
    Espero que o "seu sabiá" alce altos vôos... rs
    Beijos desta fã que vos fala!
    Helô

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  11. Helô querida,
    muito obrigado. Ouvir (ler) comentários como os seus é sempre muito bom. Faz bem pro humor da gente...

    Bem, é aquela história: sabiá na gaiola também canta, ué! rss

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  12. rm,

    meu queridíssimo romântico quixotesco

    - Chega de Saudade!

    http://www.youtube.com/watch?v=QEebEm6fEAE

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  13. Ah, O Vinicius, sempre a inspiração...

    http://www.youtube.com/watch?v=wAu1Z8t0kfg

    ...

    Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
    Que brinca em teus cabelos e te alisa
    Pátria minha, e perfuma o teu chão...
    Que vontade de adormecer-me
    Entre teus doces montes, pátria minha
    Atento à fome em tuas entranhas
    E ao batuque em teu coração.

    Não te direi o nome, pátria minha
    Teu nome é pátria amada, é patriazinha
    Não rima com mãe gentil
    Vives em mim como uma filha, que és
    Uma ilha de ternura: a Ilha
    Brasil, talvez.

    Agora chamarei a amiga cotovia
    E pedirei que peça ao rouxinol do dia
    Que peça ao sabiá
    Para levar-te presto este avigrama:
    "Pátria minha, saudades de quem te ama...
    Vinicius de Moraes."

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  14. Querida Corinha,
    adoro quando você chega atrasada e acha que não perdeu nada... rss

    A canção e o poema já haviam sido objeto de modestas postagens deste que vos fala, no contexto dessa série.

    Ainda assim agradeço muito a "lembrança"... rss

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  15. queridíssimo romântico quixotesco e... chatolindo rm,

    rs... Sim, muito ao revés, sempre se ganha e jamais é atraso evocar o ilustre poetinha - Eu sempre ganho o dia. Ainda mais quando ouço "Chega de Saudade", com a contemporaneidade da lindeza do Chico Pinheiro, instrumentista, compositor e arranjador e na voz aveludada da Luciana Alves...

    Aprecie! É carinho meu procê, em agradecimento à série... ^^

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  16. Muito prazer
    Gostei do seu blog, vi meu poema aí. Já sou sua seguidora, se quiser seguir o meu, está ainda em gestação, por enquanto tenho publicado poemas (não inéditos).www.martahelenacocco.blogspot.com
    Marta

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  17. Cora,
    claro que aprecio. Você é mesmo muito amorosa...

    Marta,
    muito bem vinda! A honra é toda minha. Vou providenciar o link para que os leitores desse bloguinho possam conhecê-la melhor...

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