terça-feira, 13 de julho de 2010

"Os verdadeiros protagonistas da luta em Cuba"

Yoani Sanchez


O ar-condicionado ronronava às minhas costas, enquanto o cheiro de sala de cirurgia grudava na roupa verde que recebi ao entrar. Sobre a cama, o corpo enfraquecido de Guillermo Fariñas expunha as consequências de 134 dias sem ingerir alimentos sólidos e líquidos.

Permaneci um bom tempo olhando para os tubos que levam ao interior de suas veias o soro que o mantém vivo e os antibióticos para combater múltiplas infecções. Faz apenas dois dias que Coco (apelido recebido por Fariñas dos amigos) anunciou a interrupção de sua greve de fome para proporcionar o tempo necessário para que se cumpra a libertação dos presos políticos. O primeiro gole de água que deu depois de tanto tempo provocou em seu ressecado esôfago a sensação de uma língua de fogo que o queimava por dentro.

Com as sequelas produzidas por um período tão longo de inanição, voltar a beber e a comer não é garantia de sobrevivência para este psicólogo e jornalista independente. Sua saúde se encontra num estado limítrofe de deterioração, como consequência de outras 22 greves de fome anteriores. Ninguém pode saber ao certo se Fariñas chegará, num futuro próximo, a apertar a mão dos prisioneiros que, com sua determinação, ajudou a libertar. Um coágulo instalou-se perto de sua jugular, as bactérias e os germes infectam seu sangue e um intestino atrofiado, pela falta de uso, mal consegue conter a flora que é derramada em seu abdômen. O herói da batalha pela libertação de 52 dissidentes e opositores terá dificuldade para vencer a luta contra a morte. O homem que desafiou um governo que nunca foi caracterizado pela clemência terá pela frente um caminho difícil para vencer suas debilidades físicas.

Justo na primeira madrugada depois de anunciar a suspensão da greve de fome, a família de Fariñas permitiu que eu cuidasse dele na sala de terapia intensiva do hospital de Santa Clara. Voltei para casa triste e cansada, rodeada de anúncios otimistas sobre os presos que deixavam o cárcere, mas imbuída da convicção pessoal de que, para Fariñas, a cruzada pela vida acaba de começar. Ainda assim, me pergunto como foi possível que nos tenham cortado todos os caminhos da ação cívica, até nos deixarem apenas com nossos corpos para ser usados como estandarte, cartaz, escudo. Quando um país se torna palco de tais greves de fome, é hora de se perguntar que outras vias restam aos inconformados e quem teriam sido os responsáveis por inibir os mecanismos de expressão dos cidadãos, e por quê.

Ainda que as grandes manchetes divaguem agora sobre o trabalho de mediação do chanceler Miguel Ángel Moratinos e a negociação entre a Igreja Católica e o governo cubano, todos sabemos quem são os verdadeiros protagonistas destas lutas. Cidadãos como as Damas de Branco, pessoas simples como Fariñas e gente sofrida como o próprio Orlando Zapata Tamayo, conseguiram que Raúl Castro começasse a destrancar as celas. Sem o empurrão proporcionado por eles, os sete anos de detenção suportados por aqueles que foram detidos durante a Primavera Negra de 2003 poderiam ter se convertido numa década ou até em meio século de condenação. No entanto, um homem decidiu fechar o estômago à bênção da comida para conseguir que eles voltassem a caminhar pelas ruas de seu país e a abraçar suas famílias. Quem o vê de perto comprova que se trata de um cidadão magro e comum, que um dia vestiu um uniforme militar como soldado de Cuba combatendo em Angola.

A mesma força de vontade que o levou a caminhar 13 km (em terras africanas) com uma bala cravada nas costas permitiu a ele manter até poucos dias atrás sua recusa em se alimentar. O terreno onde se deu o persistente protesto foi seu próprio corpo que é, afinal, o único espaço que lhe restou para protestar. 


Publicado n' O Estado de São Paulo, em 13/07/10 (tradução de Augusto Calil)

14 comentários:

  1. Li palavra por palavra.
    Por respeito, aceitação das verdades e informações ditas, e com emoção.

    Colocarei seu post em minhas páginas, elas merecem, eu mereço, e quem as lê também.

    A resistência a um estado de coisas, como um fio, corre por pessoas que, antes de serem designadas como mártires (que é o que são também as vezes quando morrem, ou sofrem como o Coco ficando no limiar da vida), iluminando suas almas que buscam o melhor para outros que dividem uma realidade distorcida pela falta da liberdade natural.

    Estou com vc, com ela, com todos que lutam por uma vida decente, digna, livre para expandir a alma que contemos.

    Parabéns. Vc também é um lutador.

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  2. Agradeço a gentileza do comentário, Sylvio.

    Mas devo dizer que não me reconheço nele, infelizmente. Agora, nunca me omiti e espero continuar assim até o fim...

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  3. Cada um tem um papel no estado de coisas, mesmos que de equilíbrio.

    Me entusiasmei com o post, talvez tenha exagerado um pouquinho; coisas que acontece.

    Que bom que não se omite, mais um... Tranquiliza.

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  4. Ahh, agora que peguei o sentido de sua resposta!...
    Ô Roney, não seja muito humilde... Sua atividade neste blog talvez seja mais importante do que vc supõe. Basta ver as pessoas que, se vc as conhece, o conhecem também: a maioria tem o que falar, e falam bem.
    Assim como vc, vamos tentando, aqui e ali, pasar algo que seja aproveitável.
    Esses são nossos passos; pequenos ou grandes, têm um valor incomensurável ordem geral das coisas.

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  5. É muito triste termos chegado (novamente) a este estado de coisas. A falta de capacidade de discernimento das pessoas frente a História do mundo é lamentável e, no perigo de me tornar repetitiva, isso passa pela educação que o mundo ignora.

    Beijos
    Anne

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  6. Sylvio,
    deve ser por aí... rss

    Anne,
    o regime cubano está caindo de podre. Yoani Sanchez será, sem dúvida, peça importante na Cuba pós Fidel e Raul Castro...

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  7. Só uma questão de tempo, Anne. E acho que será muito em breve...

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  8. O processo já está em andamento, e, em suas etapas finais.
    Insustentável apolítica executada em Cuba (um povo valoroso, e inteligente). Dolorido excluir uma riqueza tão grande em termos de cultura e humanidade, durante tanto anos , do convívio internacional.
    Com o advento da internet, informações e realidade escapam para fora da Ilha, fazendo-nos cientes do barbarismo político existente lá; o barco tá fazendo água...

    Bom domigo pro cêis.

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  9. Uma tristeza 'nossa' política exterior...
    que bosta, colocar um 'compnheiro' lá em cima, é isso que dá...
    Nunca o BRasil fez tantas amizades com os 'manos' (bandidos, ditadores e assassinos o que são (tudo junto)), que dirigem países como Cuba, países africanos, Venezuela... - abriu as pernas pro Evo (esse fantochinho mentiroso e babaca)...

    É uma lula mesmo, esse Inácio.

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  10. Ei, Caboclo,

    E aí?...

    Tem gata na área ou só rola pentelhos?

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  11. Ops! Petistas*... Rsss...

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  12. A determinação desta moça é impactante pro planeta! E tudo com doçura...
    É mole?
    Tb acho, Rm, que muito em breve Yoani Sanchez será uma peça fundamental nesse tabuleiro da liberdade!
    A jogada da virada, digamos assim!!
    Benza Deus! O povo merece... e como merece!
    Belo post, bela causa!
    Helô

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