Não tenho titulação suficiente para abordar outros idiomas (penso que talvez nem mesmo a língua pátria), mas acho muito improvável que as letras de canções - lyrics, como se diz na língua dos piratas - tenham alcançado tal sofisticação e apuro, quanto na música popular brasileira. A ponto de, em muitos casos, terem valor literário independente da música que as comporta. Claro, a música será sempre mais importante, canal direto com os sentidos, às vezes com a alma; mesmo quando musicado um poema. Mas a arte de escrever poesia para canções tornou-se tão desenvolvida no Brasil, que muitos compositores são mais conhecidos pelas letras que por suas músicas.
A história é longa e não penso fosse o caso tratar disso aqui; creio, entretanto, haja um quarteto que forma uma espécie de Olimpo, de certo modo inatingível. Noel Rosa, Vinícius de Morais, Chico Buarque e Caetano Veloso são estes quatro, na opinião do blogueiro, que estão num patamar bem acima dos demais. O que não implica em qualquer demérito para os outros. Pelo contrário, há um "segundo time" de letristas na mpb, que mereceria estar em qualquer seleção dos melhores, mas até pela excelência daqueles citados, ou, muitas vezes, por terem sido seus contemporâneos; acabam por ter a obra menos conhecida.
O objetivo da série que ora inicio é o de chamar a atenção para alguns representantes desse "segundo time", sua obra, sua importância e sua arte. Começo com Paulo César Pinheiro, o mais fecundo letrista da música brasileira, talvez recordista mundial na categoria. Estimativas dão conta de que escreveu entre 1.300 e 1.500 letras, das quais entre 700 e 800 foram gravadas.
Ainda em plena atividade o compositor carioca, 60 anos, teve dezenas de parceiros, entre os mais frequentes: João de Aquino, Baden Powell, Eduardo Gudin, Maurício Tapajós e João Nogueira (vejam aqui uma biografia resumida e aqui ótima antologia poética-musical).
A seleção de canções (restrita pela base utilizada, do Goear.com) começa com Refém da Solidao, parceria com Baden, na voz de Elizeth Cardoso. Segue Viagem, primeira composição do autor (1963), em parceria com João de Aquino, cantada por Nélson Gonçalves. Na sequência, Vou deitar e rolar (com Baden), cantada por Elis e Canto das três raças (com Mauro Duarte), por Clara Nunes, com quem foi casado. Do período negro da ditadura e da censura, duas canções que tornaram-se verdadeiros hinos de resistência: Pesadelo (com Tapajós), cantado pelo MPB-4 e Mordaça (com Gudin), aqui em gravação histórica, com Gudin, Márcia e o próprio PC Pinheiro. Fecham a sequência: Última forma (com Baden), cantada por Alcione; Violão (com Sueli Costa), por Fátima Guedes e Espelho (com João Nogueira), em interpretação da dupla.
Podia ter incluído Desenredo (com Dori Caymmi), talvez a mais bela canção já feita sobre Minas (e, como visto, de autoria de dois cariocas), mas resolvo deixar só os versos. Só?
Por toda terra que passo
Me espanta tudo o que vejo
A morte tece seu fio
De vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego
Eu me enredo
Nas tranças do teu desejo
O mundo todo marcado
A ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo
A morte é o fim do novelo
O olhar que assusta
Anda morto
O olhar que avisa
Anda aceso
Mas quando eu chego
Eu me perco
Nas tramas do teu segredo
Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe
A cera da vela queimando
O homem fazendo o seu preço
A morte que a vida anda armando
A vida que a morte anda tendo
O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego
Eu me enrosco
Nas cordas do teu cabelo
Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe